UM BRASILEIRO, SADDAM E A FARSA DOS EUA
Diplomata aposentado José Maurício de Figueiredo Bustani foi uma das poucas vozes contrárias à guerra no Iraque, reação de George W. Bush ao 11 de setembro
Grandes acontecimentos são reconhecidos como tais não necessariamente devido ao impacto em seu momento histórico ou por sua capacidade de mudar o mundo. Muitas vezes, sua reputação deve-se à maneira como foram contados. À luz dos anos, as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki foram usadas sobre populações inocentes quando o Eixo já estava praticamente derrotado. A sabedoria do tempo também permite conhecer o quão inglória foi a aventura americana em 10 anos no Vietnã.
Hoje, passados 20 anos da invasão do Iraque pelo governo George W. Bush, também não é difícil recontar, quase de cabeça, a farsa por trás daquela guerra: em março de 2003, os Estados Unidos invadiram o país do Golfo Pérsico sob o Argumento de que o ditador Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa. O país foi ocupado, destruído. Saddam foi deposto, julgado e morto na forca. E as tais armas de destruição em massas, essas nunca foram encontradas.
Alguns dos artífices da invasão, como o então secretário de Estado Colin Powell, veterano do Golfo, de 1991, admitiram que a América fora à guerra que custou mais de US$ 1,9 trilhões e 275 mil vidas por um argumento falacioso. Sim, hoje é fácil julgar. Mas, à época, poucos ousavam erguer a voz contra a decisão do governo Bush. Para o republicano e os neoconservadores de seu gabinete, a deposição de Saddam era ato contínuo da reação aos ataques terroristas a Nova York e Washington em 11 de setembro de 2001.
Uma das vozes solitárias a se opor à ambição belicista da Casa Branca falava português com sotaque carioca, embora nascido em Rondônia. José Mauricio de Figueiredo Bustani, então diretor-geral da Organização para a Proibição de Armas Químicas (Opaq), com sede em Haia, tentou, lastreado pela investigação in loco dos fatos, demonstrar que o Iraque, embora uma ditadura sanguinária, que desrespeitava direitos humanos e violentava sua própria população, não possuía armas químicas.
Mais do que voz vencida, o diplomata brasileiro foi pressionado a se calar. Como não o fez, foi afastado da direção da organização, sob o olhar omisso do governo brasileiro. O resto, a história se encarregou de contar: o Iraque foi invadido, Saddam foi enforcado, milhares de pessoas morreram e, das disputas internas a partir do vácuo político, surgiu um grupo terrorista ainda mais cruel do que a rede Al-Qaeda, que praticara o 11 de setembro – o Estado Islâmico. Até hoje, o Iraque não trem paz.
A voz de Bustani voltou a ser ouvida graças a sua amizade com o cineasta José Joffily, que dirigiu QUEM MATOU PIXOTE? (1996), OLHOS AZUIS (2009) e o documentário SOLDADO ESTRANGEIRO (2019). A história que ouvia do amigo e vizinho de Copacabana sobre a pressão que sofrera no cargo da Opaq tinha requintes tão absurdos que o diretor resolveu transformar em filme, SINFONIA DE UM HOMEM COMUM (2022), produzido pela Coevos Filmes em coprodução com Globo Filmes, GloboNews e Canal Brasil, exibido recentemente nos cinemas e sem previsão de estreia no streaming.
— Conhecia Bustani de longa data. Ele esteve aqui em casa em 2022, e me contou essa história. A narrativa dele era meio absurda, pouco crível, eu achava que era conduzida um pouco pela mágoa de ter sido defenestrado. Toda aquela história me pareceu quase fantasia. Durante uma hora e meia ele ficou falando, eu olhava e pensava: "Meu Deus do céu". Quando ele foi embora, fiquei matutando – lembra Joffily.
O motivo da descrença eram as cenas rocambolescas que Bustani havia vivenciado. Antes de a guerra estourar, em reuniões com representantes internacionais, o diplomata estranhava que os americanos demonstravam conhecer suas ideias em detalhes, quase conseguiam antever suas palavras. Certo dia, desconfiou que suas reuniões estavam sendo espionadas. Chamou um auxiliar, que destruiu a parede de seu gabinete. O interior da divisória, atrás de sua mesa, estava crivado de aparelhos de escuta ilegal.
Ao longo do tempo, segundo Joffily, foi se comprovando que tudo o que Bustani dizia era verdade. A invasão, a ausência de armas químicas e uma história que colocava em xeque a seriedade e eficiência de organizações internacionais, como a Opaq e a ONU, criadas justamente para evitar novas guerras.
A pressão americana sobre Bustani, que insistia que não havia o tão comentado arsenal proibido nas mãos de Saddam, visava justificar, para opinião pública internacional, que o Iraque era um Estado terrorista. Nesse afã, as inspeções dos especialistas em armas iam na contramão. A certa altura, o então subsecretário de Estado americano para controle de armas e segurança internacional dos EUA, John Bolton, entrou em sua sala e afirmou:
— Vim aqui com instruções do vice-presidente dos EUA, Dick Cheney, para lhe informar que você tem 24 horas para pedir demissão e ir embora.
Mais do que isso: alertou o brasileiro de que os serviços de inteligência sabiam onde seus filhos moravam. Bustani resistiu, deu várias entrevistas a veículos internacionais. Sem conseguir que ele renunciasse, os EUA usaram seu poder para garantir votos dentro da organização que garantissem seu afastamento.
Mais do que explicar a história da guerra que poderia ter sido evitada pela ação conjunta da comunidade internacional, um dos méritos do documentário de Joffily é trazer a opinião de personagens daquele momento, como o então presidente Fernando Henrique Cardoso, o chanceler Celso Lafer, o porta-voz do governo Bush, Richard Boucher, e o inspetor de armas Scott Ritter. O cineasta confronta os depoimentos com o ponto de vista de Bustani, que é capaz de desmentir o interlocutor.
Há uma grande mágoa do ex-embaixador em relação à falta de apoio do governo brasileiro. A Opaq é uma organização internacional, que acabou ganhando Prêmio Nobel da Paz em 2013. Bustani não estava subordinado à diplomacia brasileira, mas seu nome havia sido apoiado pelo governo. Ele diz que, à época, fi a Brasília para explicar a FHC que, em suas mãos, estava uma chance de evitar a guerra. No filme, o então presidente se resigna, diante da hegemonia americana e sua capacidade de ditar a agenda mundial.
A história poderia ter acabado aqui. Mas o que torna o filme de Joffily e a versão DE Bustani atuais é que a história pode estar se repetindo – não como comédia, mas com o tragédia.
Em 2019, diante do ato horrendo do ataque das forças do ditador Bashar al-Assad à oposição em Duma, na Síria, os EUA de Donald Trump apressaram-se em acusar o governante tirano de ter usado armas químicas. No entanto, inspetores internacionais da Opaq teriam concluído, no terreno, que, apesar do horror, esse tipo de armamento não fora usado. Mais uma vez, na visão de Bustani, a organização fora manipulada para servir aos interesses de Washington. O documentário traz inclusive, uma entrevista com um dos especialistas da Opaq que nega a versão oficial.
— A gente encontrou no Brasilç um inspetor de armas químicas, que veio ao Brasil procurar Bustani, que tinha o relatório dele falsificado pela Opap. Veio clandestinamente, não podia dizer quem era. Não aparece o rosto dele no filme. Ele faz parte desse grupo de inspetores que foi até Duma. Primeiro, não eram armas químicas. Depois, elas tinham sido colocadas na área por pessoas interessadas em culpar Bashar al-Assad. Certamente ele é um ditador cruel, mas não era o caso ali (de armas químicas). Uma coisa não justifica outra – pontua Joffily.
No longa, que exige concentração e algum conhecimento da história do mundo nesses 20 Anos, o pano de fundo é a incapacidade dos organismos criados para evitar a guerra de agir justamente para que ela não ocorra. Além de mostrar como a verdade pode ser manipulada para servir a interesses de grandes potências, antes da expressão fake news e narrativas se tornarem populares, o filme SINFONIA DE UM HOMEM COMUM tem o mérito de expor a hipocrisia da chamada comunidade internacional que tanto fala de paz, mas pouco se empenha em evitar a guerra.
ENTREVISTA COM JOSÉ MAURICIO BUSTANI
Após sair da Opaq, Bustani tornou-se embaixador do Brasil no Reino Unido, em 2003, e, em 2008, passou a chefiar a representação diplomática em Paris. A seguir, trechos da entrevista concedida à ZH.
Após a sua saída da Opaq, estoura a guerra, mas as armas de destruição em massa nunca foram encontradas no Iraque. O que passava pela sua cabeça, inclusive com os americanos admitindo que Saddam Hussein não tinha esse arsenal?
Naquele momento (da invasão americana ao Iraque), o New York Times me entrevistou. Isso foi logo, um ano depois (de seu afastamento). Saí em abril de 2002, e a guerra estoura em março de 2003. Eu tinha acabado de chegar a Londres, como embaixador. Fiquei um ano sem emprego depois que saí da Opaq, o governo da época me deixou na rua, desempregado. Quando Lula foi eleito, ele não me conhecia, mas havia acompanhado o assunto, me chamou e me ofereceu a embaixada de Londres. Obviamente, aceitei. Eu estava lá naquele momento (da guerra). A imprensa britânica e o New York Times me procuraram. Eu sempre disse: era uma pena que houvesse acontecido. Estava havendo uma guerra que teria consequências inéditas. A partir dessa guerra, o país desmoronou. Foi criado o Estado Islâmico, a partir da briga interna no Iraque, que continua até hoje, com impactos no comércio internacional, até no Brasil. O mundo inteiro sofreu com essa guerra. Ela completa 20 anos em março e até hoje o impacto é sentido nas relações internacionais.
Naquela época, o senhor denunciou a história da escuta ilegal implantada no seu gabinete?
Ninguém ouviu. A imprensa não deu cobertura. O tempo passou, eu voltei para minha carreira, o governo era diferente (no Brasil) e fui extremamente feliz na embaixada em Londres, depois em Paris, onde me ocupei de toda a cooperação em área de defesa. Os submarinos que estamos construindo em parceria com a França fui eu que negociei. O supercomputador que temos em Petrópolis (RJ), fui eu que negociei. Os aviões de caça (adquiridos pela Força Aérea Brasileira), eu tinha negociado os Raffale. Houve um problema já na administração Dilma Rousseff, e decidiram comprar o avião sueco (Gripen), e não o francês.
À época, houve intimidação a seus filhos, caso não saísse da OpaQ. O senhor sentiu medo?
Eu estava preparado porque o nível de agressividade era tão grande na hora em que comuniquei aos americanos que o Iraque iria assinar a convenção (contra armas químicas), e que, portanto, dentro de 30 dias, eu começaria a inspecionar o país. Se eu começasse a inspecionar, ia ficar provado que não tinha nada. Eles enlouqueceram, começaram a fazer uma campanha para interromper o processo, convocaram o conselho executivo da organização para me derrubar. Não me derrubaram, perderam. Aí convocaram uma conferência, que é ilegal, porque a convenção não prevê isso. Era para me derrubar. Foi o que aconteceu. Conseguiram, compraram países com pressão política e mesmo com dinheiro. Governos das ilhas do Pacífico foram votar contra mim porque foram pagos.
A certa altura, um dos representantes desses governos bate na porta e pergunta onde deveria votar para retirá-lo.
Foi uma comédia. Naquele momento, obviamente, os americanos mobilizaram todo grupo ocidental, exceto a França, que se absteve. Os asiáticos e africanos, que estavam comigo, sempre estiveram durante os cinco anos, perguntavam: "E o Brasil, e a América Latina?". Eu não conseguia obter uma resposta de Brasília. Brasília se omitiu, não fez nenhuma gestão na América Latina. E o que aconteceu? Os latino-americanos se abstiveram, aí os africanos e asiáticos também se abstiveram. Ficou parecendo que o Brasil tinha alguma restrição a respeito do meu desempenho. Foi uma enorme traição do governo brasileiro naquele momento. Apenas por uma visão equivocada do presidente (à época, Fernando Henrique Cardoso) de dizer que "poder é poder, e a gente tem de fazer o que eles mandam". Perdemos uma chance de ter contribuído para evitar a guerra no Iraque.
A história pode se repetir com o Irã? Acusar o país de ter armas nucleares como justificativa para uma guerra?
Claro que pode se repetir, mas o Irã não tem mais armas químicas, inclusive fiscalizei a destruição do que eles tinham. Fui até o local no deserto onde tudo estava destruído. Ninguém mais pode criticar o Irã porque o país foi superfiscalizado. Mas o Irã tem uma indústria de energia nuclear para fins pacíficos, que pode, obviamente, com a tecnologia que tem, ser convertida para ser criada uma arma atômica.
Fonte: Zero Hora/Caderno DOC/Rodrigo Lopes [rodrigo.lopes@zerohora.com.br] em 26/02/2023