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Machado de Assis
Machado de Assis

Machado de Assis

  • Conhecer as principais características da obra de Machado de Assis;
  • identificar a técnica de escrita palimpséstica machadiana;
  • reconhecer a ironia machadiana.
    • Realismo:
    • “Os modelos do passado(...) são preteridos em favor dos fatos e das pessoas da vida contemporânea investigados em cada uma de suas particularidades. A minuciosidade da descrição torna mais lento o ritmo narrativo...” (Luciana Stegagno-Picchio)

 

Os analistas da obra de Machado dividiram-na em duas fases: a primeira, de características românticas, de qual fazem parte os romances A mão e a luva, Helena, Iaiá Garcia e Ressurreição, bem como contos e peças de teatro; a segunda, inaugurada pelo divisor de águas - Memórias Póstumas de Brás Cubas -  revela um autor ágil, mais próximo das orientações do movimento estético do Realismo, principalmente por focar as classes medianas e altas da sociedade brasileira do final de século XIX e início do século XX. Desse momento fazem parte Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires, além de um grande número de contos e crônicas.

 

O ambiente no qual circulam os personagens machadianos é o Rio de Janeiro, a cidade que se delineia. E nesse ponto reside a especificidade de seu olhar: criar ficcionalmente sobre o mundo que o envolvia. Como observa Luiz Costa Lima, o discurso da ficção, por ser mimético, exige do autor que seja semelhante ao mundo recriado, o que significa que uma parcela do mundo que circunda o autor, a sua realidade empírica, acaba entrando na ficção, assim como as suas opiniões sobre essa realidade.

 

Detenhamo-nos um momento na síntese do contexto histórico no qual nosso autor produz a sua obra. Trata-se de um período de transição tanto do ponto de vista político quanto do social. Da Monarquia à República, a abolição da escravidão, os primeiros anos turbulentos da República Velha, momento em que as ideias são defendidas apaixonadamente. Enfim, criam-se instituições, consolidam-se outras; as discussões políticas exigem posicionamentos definidos. De fato, o período consiste na construção da identidade brasileira, constituída por atores sociais, cujos papéis revelam as contradições peculiares do nosso processo de colonização.

 

A corte ― mesmo quando ela não mais existe ― e seus salões, servem de palco, segundo Alfredo Bosi, para o “interesse, o amor-próprio, a vaidade, a móvel armação da ´persona social’ com a sua solerte hipocrisia e a correlata quebra das normas ditas civilizadas quando se está “por cima”. Em outras palavras, o autor flagra e expõe indivíduos movidos “pelo desejo ou pelo medo”, universais do comportamento. Todavia, não se trata de um apanhado resultante apenas de uma capacidade descritiva extraordinária, mas, de criação.

 

Citando Bosi: “Essa inventividade do romancista permitiu-lhe seguir,  graças à mobilidade do seu olhar, os movimentos públicos ou íntimos de personagens, que ora vivem segundo o capricho de sensações imediatas (...); ora comportam-se como tipos agindo de acordo com os cálculos necessários para manter ou elevar o próprio status ”

(BOSI, 2007, p.161).

 

VAMOS LER UM TRECHO DE UM DE SEUS PRIMEIROS CONTOS?

MISS DOLLAR

 

Capítulo Primeiro

 

Era conveniente ao romance que o leitor ficasse muito tempo sem saber quem era Miss Dollar. Mas por outro lado, sem a apresentação de Miss Dollar, seria o autor obrigado a longas digressões, que encheriam o papel sem adiantar a ação. Não há hesitação possível: vou apresentar-lhes Miss Dollar. Se o leitor é rapaz e dado ao gênio melancólico, imagina que Miss Dollar é uma inglesa pálida e delgada, escassa de carnes e de sangue, abrindo à flor do rosto dois grandes olhos azuis e sacudindo ao vento umas longas tranças louras. A moça em questão deve ser vaporosa e ideal como uma criação de Shakespeare; deve ser o contraste do roastbeef britânico, com que se alimenta a liberdade do Reino Unido. Uma tal Miss Dollar deve ter o poeta Tennyson de cor e ler Lamartine no original; se souber o português deve deliciar-se com a leitura dos sonetos de Camões ou os Cantos de Gonçalves Dias. O chá e o leite devem ser a alimentação de semelhante criatura, adicionando-se lhe alguns confeitos e biscoitos para acudir às urgências do estômago. A sua fala deve ser um murmúrio de harpa eólia; o seu amor um desmaio, a sua vida uma contemplação, a sua morte um suspiro. A figura é poética, mas não é a da heroína do romance.

 

Suponhamos que o leitor não é dado a estes devaneios e melancolias; nesse caso imagina uma Miss Dollar totalmente diferente da outra.

 

Desta vez será uma robusta americana, vertendo sangue pelas faces, formas arredondadas, olhos vivos e ardentes, mulher feita, refeita e perfeita. Amiga da boa mesa e do bom copo, esta Miss Dollar preferirá um quarto de carneiro a uma página de Longfellow, coisa naturalíssima quando o estômago reclama, e nunca chegará a compreender a poesia do pôr-do-sol.

 

Será uma boa mãe de família segundo a doutrina de alguns padres-mestres da civilização, isto é, fecunda e ignorante.

 

Já não será do mesmo sentir o leitor que tiver passado a segunda mocidade e vir diante de si uma velhice sem recurso.

 

Para esse, a Miss Dollar verdadeiramente digna de ser contada em algumas páginas, seria uma boa inglesa de cinqüenta anos, dotada com algumas mil libras esterlinas, e que, aportando ao Brasil em procura de assunto para escrever um romance, realizasse um romance verdadeiro, casando com o leitor aludido. Uma tal Miss Dollar seria incompleta se não tivesse óculos verdes e um grande cacho de cabelo grisalho em cada fonte. Luvas de renda branca e chapéu de linho em forma de cuia, seriam a última demão deste magnífico tipo de ultramar. Mais esperto que os outros, acode um leitor dizendo que a heroína do romance não é nem foi inglesa, mas brasileira dos quatro costados, e que o nome de Miss Dollar quer dizer simplesmente que a rapariga é rica. A descoberta seria excelente, se fosse exata; infelizmente nem esta nem as outras são exatas. A Miss Dollar do romance não é a menina romântica, nem a mulher robusta, nem a velha literata, nem a brasileira rica. Falha desta vez a proverbial perspicácia dos leitores; Miss Dollar é uma cadelinha galga. Para algumas pessoas a qualidade da heroína fará perder o interesse do romance. Erro manifesto. Miss Dollar, apesar de não ser mais que uma cadelinha galga, teve as honras de ver o seu nome nos papéis públicos, antes de entrar para este livro. seu nome nos papéis públicos, antes de entrar para este livro.

 

O Jornal do Comércio e o Correio Mercantil publicaram nas colunas dos anúncios as seguintes linhas reverberantes de promessa:

 

"Desencaminhou-se uma cadelinha galga, na noite de ontem, 30. Acode ao nome de Miss Dollar. Quem a achou e quiser levar à rua de Mata-cavalos no..., receberá duzentos mil-réis de recompensa. Miss Dollar tem uma coleira ao pescoço fechada por um cadeado em que se lêem as seguintes palavras: De tout mon coeur."

 

Contos Fluminenses, de Machado de Assis

Fonte: ASSIS, Machado de. Obra Completa.

Rio de Janeiro : Nova Aguilar 1994. v. II. Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro http://www.bibvirt.futuro.usp.br

http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000170.pdf

 

O conto “Miss Dollar” foi publicado em 1870, na coletânea Contos Fluminenses, e antes da publicação do primeiro romance do autor, Ressurreição, 1872.

 

A coletânea, segundo Alfredo Bosi, em Machado de Assis: o enigma do olhar, traz à luz  os textos de Machado, jovem contista, ainda preso à convenção do gosto das “leitoras de folhetins”. No entanto, em muito já dialoga com os romances que farão parte do “segundo ciclo da obra machadiana”, principalmente no que tange a uma certa preocupação com o leitor.

 

Nesse pequeno trecho, que abre a narrativa – o conto é extenso, quase uma novela – a inventividade do autor se registra pela criação do suspense sobre a identidade da personagem cujo nome intitula a obra. Ao adiar o enredo, levantando as possíveis suposições dos leitores, o narrador define e caracteriza cada um deles, mediante às expectativas presumíveis de cada um.

  

São quatro os tipos de leitores:

 

“o leitor é rapaz e dado ao gênio melancólico”, “o leitor não é dado a estes devaneios e melancolias”, “o leitor que tiver passado a segunda mocidade e vir diante de si uma velhice sem recurso", "mais esperto que os outros acode um leitor...”Os leitores imaginados antecipam o enredo de acordo com as suas experiências de leitura e de vida; respectivamente, temos um leitor romântico, um leitor naturalista, um leitor mais velho, mas não menos romântico em suas aspirações de casar-se com a heroína do romance, e o leitor “esperto” que imagina ser Miss Dollar uma mulher rica.

 

Nesse procedimento, a ironia machadiana se estabelece, pois, ao  dirigir-se ao leitor, lancetando as suas expectativas, ao mesmo tempo ridiculariza todos os leitores possíveis, por serem piegas, fracassados, espertos ou excessivamente frios. E, por isso, a narrativa se tornará completamente desinteressante para qualquer um desses quatro tipos de leitores, pois a protagonista é um animal, mais precisamente, uma cadela.

 

Observe que há um duplo movimento: construir e renegar expectativas, subtraindo do leitor a segurança sobre o gênero de texto que está tomando em suas mãos. Esse é um expediente bastante característico de obras posteriores, como Memórias póstumas de Brás Cubas, conforme observou um dos maiores analistas da obra machadiana:

 

“O terreno é movediço, e cabe ao leitor orientar-se como pode, desamparado de referências consentidas, e tendo como únicos indícios as palavras do narrador, ditas em sua cara, com indisfarçada intenção de confundir. Uma espécie de vale-tudo onde, na falta de enquadramento convencionado, a voz narrativa se torna relevante em toda a linha, forçando o leitor a um estado de sobreaviso total, ou de máxima atenção, próprio à grande literatura.” ( SCHWARZ, 2000, p. 23)

 

Por um lado, o narrador conduz a postura crítica do seu leitor, ao delinear a recepção esperada para o texto. Segundo Hélio de Seixas Guimarães , o público-leitor de Machado de Assis estava habituado a uma literatura sentimental e romântica; sua tarefa parece ser a de quem instrui progressivamente o seu público a fim de torná-lo capaz de “fruir a ‘literatura moderna’, que pretende constituir”.

 

“Ao antecipar a expectativa do leitor para em seguida desmenti-la, o narrador parece ter em mente um leitor acostumado a uma norma (romântica, neste caso) distinta da que considera desejável; daí a postura de quem parece estar o tempo todo corrigindo os impulsos  interpretativos do interlocutor.” (GUIMARÃES, 2004, p.128)

 

Por outro lado, a percepção de um papel “pedagógico” do escritor revelaria o esgarçamento do intelectual brasileiro, dividido entre a consciência da situação de periferia de seu país e o encantamento pela cultura e erudição de países mais “adiantados”.

 

Outro aspecto interessante e recorrente na obra machadiana já se faz presente no conto Miss Dollar: a crítica à frivolidade do leitor. Ao apresentar como heroína a cadela da raça galga, o narrador adverte o leitor quanto ao possível desmerecimento do status da protagonista, já que ela “teve as honras de ver o seu nome nos papéis públicos, antes de entrar para o (...) livro”

 

Em outras palavras, ironicamente, a notoriedade do animal se deu por constar em anúncios de jornais que prometiam uma gorda recompensa a quem a encontrasse.

 

Dentre os 200 contos de Machado, vale citar alguns que ficaram famosos:

 

A Cartomante/ O Espelho/ O Alienista/ Noite de Almirante/ Teoria do Medalhão/ Missa do Galo/ A Casa Secreta/ Conto de Escola/ Um Home Célebre/ O Empréstimo

 

Um Realismo de efeito

 

O romance que baliza o movimento Realista no Brasil é Memórias póstumas de Brás Cubas, publicado em 1881. Nele, dentre outras técnicas, encontra-se o distanciamento do narrador pela delegação da voz narrativa, expediente utilizado ironicamente, instaurando a objetividade.

 

 “Quando o romancista assumiu, naquele livro capital, o foco narrativo, na verdade passou ao defunto-autor Machado – Brás Cubas delegação para exibir, com o despejo dos que já nada mais temem, as peças de cinismo e indiferença com que via montada a história dos homens.” (BOSI, 2007, p. 177)

 

Nesse romance, Machado institui um narrador que se torna autor depois de morto, passando a relatar com a isenção de que só a morte pode conceder a quem relata a própria vida.

 

Em outras palavras, a concessão da voz narrativa a um outro, que não aquele que se apresenta ao leitor e com ele faz o pacto ficcional, permite um viés crítico e, por vezes, mordaz do objeto narrado e ao mesmo tempo, defeso das represálias que, por ventura, possam gerar com seus comentários ácidos.

 

As minhas palavras não são minhas. Elas são suas. Faça delas o que quiser. Só não as deixe se perder.

 

A delegação da voz consubstancia, de fato, o que Mikhail Bakhtin definiu como “polifonia”, cuja característica peculiar é a posição do autor que se coloca como regente de vozes da narrativa, vozes criadas e recriadas por esse mesmo autor. Em outros termos, o autor polifônico não apresenta suas personagens como objetos acabados, antes são sujeitos,  possui consciência, como a do autor.

 

Assim, para fazer com que o “outro” fale na narrativa, de forma a torná-lo também sujeito e não objeto de narração, é necessário que o autor tenha um outro enfoque desse homem, tem de ser capaz de enxergar no outro o excedente, aquilo que o outro não vê em si e, simultaneamente, aquilo que ele vê, da forma como ele vê e entende a realidade.

 

A escrita em palimpsesto – Luis Costa Lima

“...a escrita palimpsestica machadiana se constitui em deixar entrever a crítica aguda à sociedade de seu tempo, por baixo de uma narrativa aparentemente inofensiva, centrada em enredos de poucas peripécias. O uso excessivo da retórica é criticado pelo uso excessivo da própria retórica, expondo-lhe seu vazio.”

 

Teoria do medalhão

“--Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas ideias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente; coisa que entenderás bem, imaginando, por exemplo, um ator defraudado do uso de um braço. Ele pode, por um milagre de artifício, dissimular o defeito aos olhos da plateia; mas era muito melhor dispor dos dois. O mesmo se dá com as ideias; pode-se, com violência, abafá-las, escondê-las até à morte; mas nem essa habilidade é comum, nem tão constante esforço conviria ao exercício da vida.

 

-- Mas quem lhe diz que eu...

 

— Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício. Não me refiro tanto à fidelidade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa, porque esse fato, posto indique certa carência de ideias, ainda assim pode não passar de uma traição da memória. Não; refiro-me ao gesto correto e perfilado com que usas expender francamente as tuas simpatias ou antipatias acerca do corte de um colete, das dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas.

 

Eis aí um sintoma eloquente, eis aí uma esperança. No entanto, podendo acontecer que, com a idade, venhas a ser afligido de algumas ideias próprias, urge aparelhar fortemente o espírito. As ideias são de sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que as sofremos, elas irrompem e precipitam-se. Daí a certeza com que o vulgo, cujo faro é extremamente delicado, distingue o medalhão completo do medalhão incompleto.”